10 de outubro de 2020

Ensaio sobre a loucura



Sejamos loucos,
dessa loucura
que atinge poucos
e pouco dura;

outra loucura,
a que amofina
e amargura
e desatina,

oxalá nunca
a apanhemos
de garra adunca,

como um demónio,
longe da cura,
no manicómio.


© Domingos da Mota

1 de agosto de 2020

Poema dos póstumos aniversários

Fosse vivo, faria anos
– e continuará a fazê-los
no eterno oceano
do oblívio, se o esquecermos.


© Domingos da Mota

17 de fevereiro de 2020

A MESMÍSSIMA RUA

a mesmíssima rua
a mesmíssima esquina
a velhíssima lua
a novíssima menina

a mesmíssima atmosfera
a mesmíssima aragem
a novíssima espera
a velhíssima abordagem

© Domingos da Mota

Pequeno tratado das sombras, Edição Busílis, Porto, Dezembro 2018

30 de janeiro de 2020

PROCURA A CARNE

Procura a carne a carne, e a ferida
Vai-se fechando nesse lento encontro.
Encerra-se o passado ponto a ponto,
Onde havia dor vem a cicatriz.

Por si, não é feliz nem infeliz,
Essa estrada que em si a carne traça,
Um saber que não sabe, só perpassa,
E que por onde passa deixa a vida.

Nessa ruga aí vamos avançando,
O corpo amado vai envelhecer,
Que Urubu tempo junta estranho bando.

Isso que não é, chamam-lhe viver.
Assim se faz o onde, o como, o quando,
O corpo, o campo santo do prazer.

Manuel Resende

Poesia reunida, Posfácio de Osvaldo M. Silvestre, Edições Cotovia, Lda., Abril de 2018

28 de janeiro de 2020

AS PUTAS DA AVENIDA

Eu vi gelar as putas da Avenida
ao griso de Janeiro e tive pena
do que elas chamam em jargão a vida
com um requebro triste de açucena

vi-as às duas e às três falando
como se fala antes de entrar em cena
o gesto já compondo à voz de mando
do director fatal que lhes ordena

essa pose de flor recém-cortada
que para as mais batidas não é nada
senão fingirem lírios da Lorena

mas a todas o griso ia aturdindo
e eu que do trabalho vinha vindo
calçando as luvas senti tanta pena

Fernando Assis Pacheco

Variações em Sousa, colecção de poesia Inimigo Rumor, Angelus Novus, Coimbra e Edições Cotovia, Lda., Lisboa, 2004